Monday, March 05, 2007

LICENÇA MATERNIDADE






Dolores está grávida.

Gravidíssima de mil sonhos que sobrecarregam seu útero.

Por isso teme escrever algo que seja inédito demais para ela e o susto da novidade a faça perder a cria.

Precisa poupar-se da profunda ansiedade da escrita e voltar-se para a surpresa em seu ventre.

Pede vênia para deixar por hora esse espaço, e promete regressar assim que inventar nova existência.

(Março de 2007)

Wednesday, February 21, 2007

CARIOCA - PARTE FINAL


Ergueu-se sem grande esforço, espalmando as mãos enrugadas de sal na areia fofa. Sentiu enquanto cruzava a Atlântica uma profunda sensação de milagre, como se em seu ventre carregasse o futuro. Encontrou os móveis ordenados, os quadros alinhados, os entes queridos mumificados nos porta-retratos. Mas não encontrou nenhum pedaço de si armazenado entre as quatro opacas paredes daquele apartamento. Toda a delicadeza de sua existência havia se perdido nas espumas do mar de Copacabana. Agora, sua vida era um ventre entreaberto, fecundado por um boto. O desejo de ser mãe era um sonho antigo, mas o superlativo de sua existência amedrontava os homens. Morria a cada noite, quando os sonhos revelavam que não encontraria na suposta outra metade o espanto de vida pela qual sua alma ansiava. Mas agora era mãe, e a vida fruía de seu ventre. Gargalhou da loucura de poder gerar. Sentiu a arfante respiração de mil peixes em sua barriga, e pressionada pelo excesso de ar, a bolsa estourou. A água salgada inundou o apartamento, derrubou a porta, invadiu corredores até a última onda alcançar a cobertura. Enquanto se afogava de liberdade, ouviu o choro confortante de uma criança. Mamãe, mamãe, mam..

Sunday, February 04, 2007

CARIOCA - PARTE II


Percebeu que já não conseguia mover tronco e membros. Flutuava como resto de alga, sobre a espuma branca do mar inerte. Sentiu-se profundamente livre, com as pernas abertas e a intimidade encharcada pela imensidão azul. Atraídos pela vivacidade de seu sangue, os peixes a rodeavam, encantados, fazendo-a gargalhar com o roçar de escamas sobre sua delicada pele. Já se divertia com a bóia viva de cardumes multicoloridos, quando encontrou os olhos absurdamente negros, parcialmente imersos na solidão do oceano. Permaneceu em estado letárgico, observando-o engolir, de uma só vez, todo o cardume, e em seguida enfiar as narinas entre as genitálias dela, e embebê-la de sua seiva. As ondas provocadas pelo êxtase da fecundação se encarregaram de devolvê-la à areia. Acordou no posto seis, sob os olhares atônitos dos banhistas.

Friday, February 02, 2007

CARIOCA


Naquele dia, vestiu a blusa que mais detestava. Justamente aquela que evidenciava todos os seus excessos. Saiu sem bater a porta, deixando a casa e seus mistérios à mercê da curiosidade alheia. Desceu as escadas, desejando não encontrar nenhum móvel, utensílio ou vestimenta caso regressasse. Cruzou a Atlântica sem olhar para o sinal, nem para os carros. Ouviu buzinas, xingamentos, uma batida seca. Levantou-se sem esforço. Daquele jeito, manchada de vermelho, a blusa bege ficava ainda mais repugnante. Saltou do asfalto para a areia. A blusa bege se afundou na imensidão do mar azul petróleo, até se perder de vista.

Friday, January 26, 2007

Da beleza da imaturidade


- Teresa, porque as crianças perdoam tão rápido?

- A gente não perdoa, Dolores.

- Não?

- Não. É que a gente compreende tanto, tanto, que nem precisa perdoar.
*****************************************************************

- Dolores, como é que eu vou saber que já cresci?

- Quando você começar a raciocinar antes de acreditar, minha pequena.
************************************************************************

- E o que é esperança?

- É um inseto ortóptero que imita folha seca pra se esconder, Teresa.

- Hum...Igualzinho ao que gente grande faz. Eu acho, Dolores, que a esperança é o nome que se dá ao medo que as pessoas grandes tem de acreditar que o sonho é possível já. E é por isso que elas preferem acreditar que são só um montão de folhas secas: pra se esconder do presente e esquecer que a felicidade verdinha pode acontecer agora mesmo.

Thursday, January 18, 2007

Chuva de Verão


Esquecera o guarda-chuva. A maquiagem estava borrada, os dedos ensopados e escorregadios, o cabelo espigado. Calor insuportável que sucede as chuvas secas de verão. A promessa de refugiar-se entre as pernas dele, entre lençóis macios e a névoa fria do ar-condicionado, a fizeram prosseguir saltando os buracos do asfalto, esforçando-se para equilibrar-se sobre o salto instável, suportando as buzinas dos impacientes e o trânsito caótico dos dias chuvosos. Tropeçou numa tora de madeira trazida pela água, caiu de palmas no chão. Balançou a terra dos dedos, lambeu o dedão machucado. Arrancou as sandálias, apressou o passo, apertou a campainha estridente. O porteiro abriu a porta, ofereceu uma toalha. Agradeceu a cortesia, invadiu o elevador, passou a mão pelos cabelos. Encostou o dedão machucado na campainha. Silêncio do outro lado. Insistiu, com um pouco mais de força. Não obteve resposta. Resolveu bater. Nada. Minutos depois, se deu conta de que chorava, enquanto esmurrava o muro de madeira, e ouvia a secretária eletrônica do celular. Desceu o elevador em prantos. O porteiro lhe assegurou que o havia visto entrar. Disse, com a mão sobre a sua, que os homens dessa nova geração são assim mesmo: displicentes, insensíveis, nada cavalheiros. Inclusive, havia percebido pelo cambalear de pernas dele, que havia bebido um pouquinho. Devia ter caído no sono, rendido pelo álcool. Não era pra moça se importar. Voltou a oferecer-lhe uma toalha, acompanhada de um cafezinho, no quartinho nos fundos do prédio. Não encontrou a névoa do ar-condicionado, mas o ventilador de duas pás era suficiente para afastar o calor. Os lençóis estavam limpinhos, cheiro de sabão de coco, recém-saído do varal. Acordou com o Sol incomodando os olhos. A primeira coisa que viu foi a calça desbotada do porteiro dobrada sobre a cômoda.

Thursday, January 11, 2007

Bolivariana


Ele têm cara e voz de rato latino da Disney. Nada simpático e radical, ele dificilmente se transformaria em um ícone comercial para venda de camisetas e boinas fora de Caracas. Ainda assim (ou por isso mesmo), tem ocupado nas últimas semanas mais espaços midiáticos que todos os líderes latinos, europeus, africanos e asiáticos juntos. Graças a ele, Dolores têm garantidas as suas gargalhadas diárias, ao assistir e ler os comentaristas neoliberais (essa expressão já virou démodé?) blasfemarem contra o populismo do ditador venezuelano. Sua preferida é a Miriam Leitoa, que entre babas e cabelos ao vento, adverte a iniciativa privada, com crescente sofreguidão, sobre o risco de uma “revolução bolivariana”. Dolores rola de rir diante das múltiplas interpretações dos donos da voz sobre o novo socialismo pregado pelo baixinho, muito similar ao capitalismo andino-amazônico que o índio Morales tem tentado implantar em território boliviano. E, quase convulsionada de tanto gargalhar, imagina o quanto deve estar sendo torturante pro Bush e companhia assistir à ascensão do ratinho, justo no momento em que Fidel ameaça pendurar as botas. Dolores não se daria por Chávez, nem ergueria bandeiras por suas idéias: ele lhe recorda o Brasil de seus pais, e o recente México sob domínio do PRI. Mas só por ousar seguir um outro caminho, ele faz jus as suas cores.